Numa recente entrevista concedida para o Estadão/Broadcast, um CEO de um grande fabricante brasileiro de vestuário se manifestou a respeito das implicações intrínsecas no ato de um consumidor final adquirir uma “t-shirt” por meio de um famoso site chinês. Como toda entrevista realizada com profissionais dessa envergadura, e especificamente em relação a esse tema, ficam evidenciados alguns aspectos que podem ser classificados como “instigantes”.
O primeiro deles se refere à qualidade das perguntas realizadas junto ao entrevistado, todas com pouca ou nenhuma capacidade de movimentar algum músculo da face de quem as lê, bem como da quantidade de perguntas realizadas. Resumindo, poucas perguntas e poucas perguntas interessantes. Fica evidente o abismo existente entre o entrevistador, que pouco sabe sobre o contexto estratégico-mercadológico do setor de fabricantes de vestuário presentes no Brasil, e o entrevistado, que deve saber quase tudo a respeito.
O segundo aspecto vem justamente desse fato. O entrevistado se posiciona como um representante de toda indústria falando em nome da mesma, fazendo parecer que todos os seus concorrentes, junto com a empresa que preside, estivessem alinhados em torno da mesma causa. Fica a sensação de “temos um inimigo em comum, logo, somos amigos”. É compreensível a postura do entrevistado. E caso fosse eu seu diretor de marketing, afirmaria que a entrevista foi perfeita. Mas não sou.
A resultante desses dois aspectos salientados é uma entrevista morna, onde o entrevistador perguntou aquilo que o entrevistado esperava ser perguntado. É, por essas e outras, que se criou a fantasia, muitas vezes real, da dita cuja “matéria paga”. Não é o caso em questão, tendo em vista o nível instigador da matéria jornalística, que nem se deu ao trabalho de investigar o “outro lado” da questão central motivadora da entrevista.
E aí se chega ao ponto nevrálgico, utilizado pelo veículo na tentativa de ganhar audiência. Trata-se de uma questão importante para o momento econômico atual em que produtos chineses, mais particularmente peças de vestuário, estão cada vez mais acessíveis a consumidores finais presentes em território nacional. Atrelado a essa questão vêm dois temas igualmente importantes, a competitividade do setor e o já “famoso” ESG, dois argumentos utilizados como “armas de contra-ataque” diante da invasão chinesa.
Em relação à competitividade, nada mais justo que a indústria de vestuário faça uso de suas forças armadas formadas por advogados, jornalistas e lobistas em defesa de maior equidade de condições de artilharia. Nada a se questionar nesse sentido.
Entretanto, fazer uso das questões do “famoso” ESG chega a ser um ato de extrema hipocrisia e alienação.
Tentar incutir na mente do consumidor final brasileiro de que ele se torna um “pecador” ao adquirir uma “t-shirt” por meio de um varejo online chinês é um sacrilégio ao bom senso.
Em tempo: uma analogia envolvendo certas entidades religiosas tipicamente brasileiras cairia muito bem nesse momento, mas, por uma questão de princípios, vou resistir a fazê-la.
O “apelo apelativo” vinculado a questão ESG é típico de quem não conhece a realidade sócio-cultural, em todos os seus níveis, do consumidor final brasileiro cujo poder aquisitivo é bem diferente quando comparado a qualquer CEO da indústria do vestuário.
Ouso dizer que, caso estivessem nas mesmas condições da maioria da população, qualquer um deles não hesitaria mais do que 15 segundos para comprar uma “t-shirt” do outro lado do mundo. A santa hipocrisia alienada desconsidera o fato de que 70% da população brasileira ganha até dois salários mínimos. Torço para que alguns desses CEO`s saiba o valor de um salário mínimo.
Que fique claro para o acidental leitor(a) dessa coluna que esse velho professor de marketing rabugento nada se opõe ao desenvolvimento dos processos de gestão inspirados em questões fundamentadas pelo ESG. Mas que não se esqueça que o termo foi cunhado pelo maior fundo de investimentos do mundo. E isso diz muito.
O que incomoda é fazer uso dessas questões como forma de se adequar “às tendências de mercado” onde nenhum dos referidos 70% estão presentes. O mesmo questionamento pode ser aplicado ao contexto dos carros elétricos, mas isso é uma outra história.
Por fim, será que a tia do café da empresa do CEO entrevistado pelo Estadão/Broadcast ganha mais do que dois salários mínimos? Se sim, que seja bem mais do que isso. Se não, o discurso é “puro marketing”, para ser o mais gentil possível.
Ricardo Poli é professor, palestrante, provocador, piadista e colunista da BRING ME DATA.
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As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.