A temática da pauta dessa coluna, com toda certeza que possa existir, não foi uma aposta provocadora das poderosas meninas da MACFOR, como sempre gostam de fazer. A relação com esse velho professor de marketing rabugento ruma a seu primeiro aniversário, tempo suficiente para distinguir entre uma sugestão de pauta provocativa de uma obrigatoriamente indispensável.
Escrever sobre o atual contexto do mundo das apostas esportivas online impede até mesmo o exercício do bom humor. Inevitavelmente, o assunto leva a considerações que transcendem os processos de marketing, de estratégia ou da comunicação do mundo dos negócios. E sim, existe algo para além desse mundo. Na verdade, um universo onde esse mundo é um planeta bem pequenininho.
Na lógica intrínseca desse planetinha, as plataformas de apostas esportivas online, as ditas BETs, podem ser consideradas como o mais recente fenômeno mercadológico de sucesso. Um negócio que surgiu e cresceu vinculado à evolução da tecnologia digital e que soube muito bem fazer uso dela para se tonar um dos mais rentáveis já vistos. A potência de tal rentabilidade é inimaginável, e assim o é por estar atrelado à obscura intimidade humana.
Um estudante em sala de aula, como toda certeza que possa existir, certamente usaria a famosa máxima desse professor para confrontá-lo diante da ousadia proposta por ele ao questionar as razões existenciais e a moral do negócio das BETs. Diria de forma impetuosa: “Mas Poli, você mesmo disse que se um produto ou serviço existe e vende é porque atende a um conjunto de necessidades e desejos. O processo de marketing não questiona necessidades e desejos, ele os entende e atende. Você está sendo incoerente…”
Diante da imprevisível expressão facial desse que aqui escreve, o restante da sala estaria em silêncio fúnebre ou reagiria como a torcida corintiana diante de um gol espetacular do Ronaldo Fenômeno. Após alguns segundos para absorção de tal inteligente afronta, proporia calmamente (e isso iria requerer um esforço enorme) uma subversão da histórica máxima mercadológica. Afinal, se ela foi criada por mim, ninguém melhor do que eu para subvertê-la. Em tempo: nesse momento, o atrevido aluno já estaria arrependido do que disse.
Sim, o processo de marketing não questiona necessidades e desejos, pois não cabe a ele, ainda que se o fizesse, demonstraria uma louvável evolução. Tentativas podem ser constatadas nesse sentido, como é o caso do já tão famoso ESG, ainda que tenha sido concebido por um dos maiores fundos de investimento do mundo. E como não é difícil saber, fundos de investimentos têm um único objetivo existencial.
Para facilitar a reflexão proposta diante da hipotética sala de aula, sagazmente sacaria de meu armamento didático-pedagógico, um exemplo real discutido em uma sala de aula verídica. O caso era de um fabricante de produtos eróticos do Japão que causou um tremendo furdunço ao fazer o lançamento de bonecos infláveis em formato de crianças. Diria esse professor em tom de vingança ao corajoso estudante: “E aí? Marketing não questiona, meu caro?” Em tempo: os orientais, às vezes, decepcionam.
Muitos são os produtos fabricados e vendidos para confecção de balões em tempos de festas juninas. Balões derrubam aviões. “E aí? Marketing não questiona, meu caro?” Vale o mesmo raciocínio para fabricação de armas, cuja única função todos sabemos qual é. Entretanto, marketing é maravilhoso e tem resposta para tudo: “Não vendemos armas, vendemos capacidade de defesa.” O pessoal do chamado “marketing digital” diria se tratar de um belo “copy”, seja lá o que isso signifique. E, em se tratando de um belo copy, “tá valendo”!
Com toda certeza que possa existir, o fabricante japonês de produtos eróticos também estava munido de um argumento publicitário, inquestionável e com grande poder de persuasão justificatória.
Seguindo essa lógica, poder-se-ia estender tal reflexão aos fabricantes de bebidas alcoólicas, bem como de refrigerantes, de produtos tabagistas ou para os fast foods. Nenhuma dessas indústrias vai se dispor a promover campanhas de comunicação mercadológica espetaculares que incentivem o abandono de seus respectivos produtos, tão pouco a redução de seu consumo. Mesmo porque quase todas têm como acionista o fundo de investimento criador do ESG.
Eleve-se tal questionamento à centésima potência e chegaremos à discussão sobre a indústria de BETs. A título de racionalidade, uma indústria que movimenta nesse planeta, atualmente, US$100 bilhões por ano, sendo que, até 2026, estima-se que tal cifra chegue a US$20 bilhões por mês. Algo admirável em termos mercadológicos, não?
Não vou me dedicar aqui aos casos de fraudes promovidas por atletas ou qualquer outro “stakeholder” do meio esportivo. São inúmeros casos, mas que pouco impactam financeiramente no negócio em questão. Até a NBA já possui ao menos um caso desse tipo. Em tempo: essa mesma NBA planeja incorporar, no próximo ano, apostas ao vivo em sua plataforma League Pass. Algo que o Placar UOL já faz em parceria com uma dessas empresas de BETs.
Empresas de apostas esportivas online são os maiores “patrocinadores de camisa” de times do campeonato brasileiro de futebol, bem como de outros campeonatos nacionais ao redor do mundo. Até aí, nenhuma novidade. Aplicativos de BETs estão presentes em milhões de aparelhos celulares, o produto mais popular desse planeta. Os caça-níqueis dos botecos sujos e escondidos estão desaparecendo. Agora, todos possuem um caça-níqueis na palma da mão, para ser usado quando quiser, onde estiver e junto com quem escolher.
Em tempo: a lógica intrínseca do negócio das BETs é muito fácil de se entender e compreender. Nem é preciso ler um livro para isso. Assista o ontológico “Cassino”, dirigido por Scorsese, e tudo ficará muito claro. Mas termine a leitura dessa coluna antes disso, por favor.
Apostas são, como a própria concepção que as define, jogos de azar. Mais de azar do que de sorte. Não é preciso muito recurso intelectual para acreditar na velha máxima dos cassinos: “A banca sempre ganha!”. E não é tão difícil entender que uma parte da motivação que traz usuários para as BETs está vinculada a desejos vinculados ao modelo sócio-cultural que vivemos. Em outras palavras, o sonho de ficar rico, ou de ganhar dinheiro sem o mínimo esforço. Também não é preciso ser um especialista em Freud, Jung ou Lacan para compreender que a outra parte da motivação é reflexo de desejos inconscientes e, o pior, incontroláveis.
Em outras palavras, fazer sem saber o porquê se faz, sem a capacidade de parar de fazer o que faz, ainda que o que se faz não seja algo que faz bem a você. No caso das apostas, isso é muito mais sutil, sem que se exija do usuário qualquer deslocamento, interação pessoal ou exposição social. Algo como um câncer silencioso. No caso das BETs, um câncer contagioso com enorme potencial epidêmico, obviamente, de grande custo pessoal, familiar e social.
As BET´s são inevitáveis, bem como o impacto gerado em seus usuários. Por conta disso, há de se limitar, regular e taxar agressivamente o uso de seus aplicativos. Não são as empresas de apostas esportivas online que farão isso. Por elas, crianças podem baixar seus aplicativos para brincar de apostar sem fazer uso de dinheiro. Afinal, qual o problema? É só um joguinho, não?
Somos o maior inimigo de nós mesmos. Nem sempre, ou quase nunca, desejamos aquilo que nos faz bem, quer sejam pessoas, produtos, serviços ou sonhos. Com toda certeza que possa existir.
Ricardo Poli é professor, palestrante, provocador, piadista e colunista da BRING ME DATA.
Cadastre-se para receber a BRING ME DATA toda segunda para não perder as principais novidades e tendências do mercado com opiniões de grandes especialistas.
As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.