Encarando mais um apagão em tempos de desastre climático, procurei a caixa de fósforos no fundo da gaveta para acender a vela. A caixinha estava ali acabrunhada, esquecida, cheia de palitos intocados.
Peguei o primeiro, risquei e ele se quebrou no meio. O segundo também. O terceiro não quebrou, mas risquei a cabeça do fósforo quatro vezes até exaurí-la e nada. Santo Deus! Lembro dos fósforos tão presentes e eficientes nas nossas vidas, para acender o fogão de cada dia ou incendiar a churrasqueira no final de semana.
Já imaginei os líderes da célebre marca de fósforos em reunião sinistra priorizando a infeliz ideia de reduzir a densidade da madeira ou mesmo a qualidade da matéria-prima para diminuir custos e aumentar margens.
É a concretização de um ritual empresarial trágico: silenciam diferenciais que antes brilhavam como bandeiras de orgulho, frustram expectativas dos clientes e impactam a satisfação: tiram 20 gramas do chocolate, simplificam fragrâncias do sabonete, substituem papel premium por cartão simplório. Por fora, o produto até parece igual, mas por dentro, está apequenado, violado.
Consumidores costumam perceber essas mudanças rapidamente. Sentem o chocolate com mais gordura hidrogenada, o perfume menos intenso, o fósforo quebradiço.
Certa noite dos anos 1990, eu e queridos amigos afogávamos as mágoas em copos altos do whisky White Horse, em ritual de despedida do cavalinho branco de plástico que vinha junto com a garrafa para reforço de marca, criando uma associação simbólica e lúdica com o produto, gerando diferencial de qualidade. Já visualizei a decisão do zeloso executivo, decretando a morte do cavalinho, estimando ganhos de produtividade e redução minúscula de custo unitário. R.I.P cavalinho querido!
Em 2011, o cineasta Arnaldo Jabor, em coluna do Estadão, escreveu sobre sua decepção ao perceber que haviam modificado a embalagem do saudoso chiclete Adams. Tinham janelinha de celofane transparente pela qual se viam os chicletes chacoalhando. Aflito, ele viu que a janela original havia sido substituída por uma falsa abertura, desenhada com chicletinhos impressos como simulacro. Nos dias mais atacados, Jabor chamava esses executivos que nos surrupiavam o valor das coisas de “almofadinhas canalhas”.
O que soa como ganho imediato pode ser golpe de longo alcance na percepção de valor, corroendo o vínculo emocional entre marca e cliente. Em mercados onde produtos competem não só por preço, mas por significados e experiências, trocar valor por margem pode ser um tiro no pé de impacto imediato ou, na melhor das hipóteses, uma bomba de efeito retardado.
Realmente, há situações de crises econômicas, de retração de consumo, de análise de segmentos específicos em que precisamos cortar, reduzir, ajustar e encontrar alternativas de competitividade, mas é preciso deixar claro que existem outros caminhos possíveis.
Marcas podem crescer, elevando o padrão como a Casa Bauducco que, em seu projeto de reposicionamento de cardápio, preferiu seguir investindo em café de grãos especiais do que aumentar a margem optando por produto mais barato. A Dengo investe numa cadeia produtiva sustentável, com agricultura regenerativa e mínimo de açúcar. Algumas marcas de cosméticos reforçam ingredientes naturais e diferenciais sustentáveis.
Como profissionais, podemos ser a voz que desafia a lógica do “facão afiado que decepa valor em qualquer situação”. Devemos analisar informações para compreender que há características que não são valorizadas pelos consumidores e podem ser eliminadas, detalhes que caducaram e podem ser atualizados, elementos que devem ser ajustados para a necessidade de segmentos, sem impacto negativo na satisfação e com até maior adequação à expectativa de determinado grupo.
Entretanto, vale alertar nossas organizações que, no fim, as pessoas não compram produtos; elas compram experiências, histórias e, mais que tudo, valores.
Reduzir qualidade pode até aumentar o lucro no semestre, mas também pode conduzir à perda de participação de mercado e ao prejuízo do próximo ano. Por outro lado, elevar o valor percebido sempre constrói marcas memoráveis e resultados sustentáveis.
Vou esperar o próximo apagão, estrear a nova caixa de fósforos que comprarei, torcendo para que a fabricante leia meu artigo. Se tudo der errado, transformo a caixinha em instrumento de percussão na roda de samba. Só falta ela se esmigalhar entre meus dedos depois do primeiro refrão…
Luiz Serafim é apaixonado por inovação, palestrante, professor, diretor-executivo da “World Creativity Day” que organiza o maior festival colaborativo de criatividade do mundo e colunista da BRING ME DATA.
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As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.