Existe salvação para Sallve?
Nunca uma sugestão de pauta das meninas da Macfor sintonizou tão bem com os anseios de um velho professor de marketing rabugento metido a colunista semanal.
Novamente, recomendo a leitura prévia do artigo genitor dessa coluna, um texto simpático, elegante e “bem executado” por Letícia Toledo para o Boletim Varejo do Linkedin. O acidental leitor constatará, em poucos segundos, um estilo oposto ao que encontra por aqui. Somos o que podemos ser, como tão bem definido na música de Humberto Gessinger.
O objeto central do texto de Letícia são as empresas ditas como “nativas digitais” (DNVBs, na sigla em inglês), tendo como foco a trajetória da Sallve, fabricante de cosméticos, na concepção desse professor, mas não na concepção da própria Sallve quando do seu surgimento.
É esse o dilema central que a referida autora descreve muito bem em sua coluna. Como já alertado, esse “metido a colunista” não resiste a ficar restrito à descrição de um contexto, sempre arriscando fazer uma análise estratégica temperada como pitadas de acidez, rebeldia e sarcasmo.
Isso posto, vale conceber o que se entende por “empresas nativas digitais” (END), que nada têm de novo em termos da oferta de um produto para uma demanda que já existe. A velha força motriz daquilo que se entende por marketing.
O que se pretendeu ter como novidade foi uma “ponte direta” entre tal origem e destino, sem a existência de pedágios como, até então, pouco se fazia. Vale lembrar, que essa “ponte direta” já existia no mundo dos cosméticos. Em alguns casos, o detentor da oferta é o dono da ponte. Basta se lembrar do Boticário ou da Natura, que decidiu pela criação de milhares de pequenas pontes próximas a sua demanda.
A proliferação das ditas ENDs na última década se deu em função da transformação do ambiente tecnológico, que propiciou a existência de um canal de comunicação direta entre marcas e consumidores finais como nunca acontecera na história da humanidade em termos de viabilidade e escalabilidade.
Afinal, a internet, no contexto dos negócios “business-to-consumer”, criou um meio de comunicação disponível na palma da mão de cada consumidor final. E propiciou que marcas pudessem se tornar um veículo de comunicação de informação, entretenimento e vendas. Somado a isso, os próprios consumidores também se tornaram, em maior ou menor grau, veículos de comunicação.
Esse cenário se tornou extremamente sedutor para criação de novas marcas de bens de consumo, pois trazia a possibilidade de uma ligação da oferta diretamente para a demanda. Na prática, sem os caros pedágios impostos pelo varejo.
Bastava que se tivesse um forte arcabouço tecnológico para que se estabelecesse um canal direto. Esse era o princípio estratégico do novo modelo de negócios que passou a existir, ou seja, a origem daquilo que se entende “natividade digital”. E o fundamento original estava preservado, algo que jamais vai mudar: atender necessidades e desejos por meio de produtos.
Entretanto, algo foi esquecido.
A origem da palavra sedução é afastamento, algo como sair do caminho devido. Nada mais emblemático diante do contexto mercadológico em questão. Faltou compreender os fundamentos do “bom e velho” marketing sem se deixar seduzir pelo cenário tecnológico.
A sedução tecnológica é responsável pela falência de cerca de 90% das startups, algo que acontece pouco tempo depois de seu nascimento.
A principal questão gira em torno do posicionamento estratégico desses novos negócios. No artigo de Letícia, é citado, pelo CEO da Sallve, a concepção do negócio já não é mais de uma END, mas de uma empresa de beleza.
Mas isso não deveria ter sido considerado desde o início? Algo mais do que básico para quem decide fazer a oferta de cosméticos para o mundo, não? Trata-se de um princípio do “bom e velho” marketing que jamais deveria ter sido violado.
Somado a isso, foi levado em consideração o pressuposto de que, ao se relacionar diretamente com o consumidor final por meio daquilo que a tecnologia digital poderia disponibilizar, os preços dos produtos poderiam ser menores. E o melhor de tudo, as margens de lucro seriam mantidas, visto que no varejo, o pedágio inevitável nesse caminho, não seria mais necessário.
Algo como um atalho vicinal. Doce ilusão.
E iludidas foram essas marcas ENDs pelas empresas de mídias digitais que, incialmente, se posicionavam como uma alternativa mais econômica e viável operacionalmente para execução de processos de comunicação mercadológica. De início, uma verdade, mas depois acabou se tornando uma relação de dependência visceral que, com o tempo, passou a ter um preço cada vez mais salgado.
Tal salinidade ficou ainda mais intensa por conta da pandemia, que obrigou grandes marcas de cosméticos, com mais poder de fogo “midiático”, a irem para o mundo digital. E como se não bastasse, mesmo com o fim da pandemia, o preço do pedágio não baixou, como ingenuamente esperavam algumas END´s.
O consumo de cosméticos por meio do e-commerce diminui e do varejo tradicional aumentou. Ironicamente, o pedágio das mídias digitais, hoje, é mais caro que o pedágio do varejo.
Não vou me ater aqui ao posicionamento de marketing da Sallve em atender o público “millennial”, seja lá o que isso signifique. Pode se tratar de outra armadilha, uma opção de foco traiçoeira, que pode limitar a oferta de seus produtos a um público muito mais amplo, visto que se trata da concepção de um segmento de mercado difusa e mal resolvida.
Outro ponto a destacar é algo que parece ser óbvio para as ENDs. Considera-se que, para se conhecer necessidades e desejos dos consumidores finais no que tange a cosméticos, basta que se pergunte a eles sobre isso. Afinal, ninguém melhor do que um consumidor final para conhecer seus desejos e necessidades, certo?
Nem tanto, ainda mais quando se trata de cosméticos. O consumo de cosméticos está atrelado a um conjunto de desejos (e necessidades) ligado a vaidade. A vaidade, como ensina a psicologia pouca estudada pelas startups de cosméticos, é algo subjetivo, emocional, afetivo.
Traduzindo, consumidores não têm domínio racional ou exato sobre aquilo que desejam. Sabem que desejam, mas não sabem o que desejam. Não se trata de uma matriz racional direta e objetiva. Pessoas esperam pelo inesperado, principalmente no que tange ao consumo de cosméticos ou moda.
Pessoas gostam de ser surpreendidas.
Você acha mesmo que Ralph Lauren ou Dior fazem grandes investimentos em pesquisa de mercado? Pode ter certeza não.
O que mais surpreendeu na leitura do artigo foi a declaração do executivo de uma famosa gestora de investimentos dedicada a startups afirmar que o mundo do “venture capital” acreditava ser possível escalar as vendas de produtos de END´s da mesma forma que se escalavam as vendas de um “software as a service”. Além disso, o mesmo executivo afirmou que “mesmo as melhores marcas possuem um teto de crescimento no ambiente online e quem quer construir uma marca bilionária, precisa estar também no offline.”
Jura mesmo? Prefiro acreditar que tenha sido um pensamento ingênuo, ainda que originado da mente do CEO de uma grande gestora de investimentos. Produtos não são serviços, ainda que possam ser híbridos. São dinâmicas mercadológicas bem diferentes. Outro fundamento esquecido do “o bom e velho” marketing.
Por fim, a Sallve agora está movendo esforços para se tornar uma empresa de cosméticos “multicanal”, o que justifica a recente compra da Contém 1g, que já traz consigo “acesso a canais de distribuição” (entendedores, entenderão).
Percebeu também que uma outra força joga contra sua atuação no meio digital: as marcas cosméticas de influencers. Uma tendência inevitável, com baixas “barreiras de entrada” (entendedores…), visto que fabricar cosméticos já não é um grande mistério em tempos atuais.
Resumindo, Sallve descobriu, a duras penas, que precisa se tornar, efetivamente, uma empresa fabricante de cosméticos e desistir de ser uma empresa de tecnologia. Algo como Boticário, Eudora, Quem disse Berenice?, Vult, O.U.i, Beleza na Web, todas do Grupo Boticário.
Tem um longo caminho pela frente. Já percorrido há tempos pelas empresas bilionárias fabricantes de cosméticos. Tecnologia é meio e não fim. Criar uma marca é mais caro do qualquer investimento em tecnologia de uma END. E como disse um velho professor de marketing rabugento metido a colunista em seu mais recente projeto de branding:
“Sempre há algo novo a ser descoberto por meio de algo velho a ser lembrado.”
Ricardo Poli é professor, palestrante, provocador, piadista e colunista da BRING ME DATA.
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As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.