Fiat decide: “qualquer cor desde que não seja cinza”
Nunca foi tão fácil para esse professor “old is cool” escrever a respeito de um tema indicado para a coluna da Bring Me Data. Automóveis sempre foram uma paixão que, ao longo do tempo, se arrefeceu por conta dos estudos em marketing. Quando se entende os mecanismos de criação de desejos nas suas mais diversas formas, tende-se a ter, cada vez mais, uma visão racional e menos romântica a respeito das marcas de automóveis, assim como qualquer outra.
Em tempos modernos, tudo é proposital. A inocência e a espontaneidade ligadas ao empreendedorismo que levou à criação de marcas ligadas a carros ou motos já deixaram de existir há décadas.
Hoje, são utilizadas somente como incremento ou tempero na criação de storytellings mágicos e emotivos. Os números são emblemáticos nesse sentido, visto que, entre 1896 e 1930, cerca de 1.800 fabricantes de automóveis diferentes funcionaram nos EUA, todos americanos. Quantas marcas americanas de automóveis existem atualmente? De motos, então, não mais do que duas ou três.
Marcas automotivas tradicionais e famosas de origem inglesa, francesa ou italiana hoje pertencem a grupos alemães ou, quem diria, indianos. A mais famosa marca sueca de automóveis (aquela mesma que você está pensando) hoje pertence a um grupo chinês. Em termos de marcas automotivas, tudo virou uma sopa de letrinhas, literalmente. Algo como comer pizza de sushi ou pastel de x-salada, vulgo pastelanche.
O grande desafio é encontrar um lugar ao sol em tempos em que fábricas alcançaram ganhos de escala inimagináveis. A título de exemplo, um fato surpreendeu esse professor em um documentário sobre a Kawasaki: em uma única unidade no Japão, eram fabricadas, do início ao fim, 1.000 motos do modelo Ninja por dia. Haja demanda! Os pátios da Volkswagen no Brasil atualmente refletem um pouco disso.
Diante de tanta oferta, existe demanda à altura?
Nem vou me furtar aqui a entrar na questão do destino dos carros obsoletos, que assim se tornam em cerca de 10 anos.
Em meio a tudo isso, o desafio passa pela capacidade de se oferecer diferenciação. Os ganhos de escala, em combinação com o binômio “oferta & demanda”, acabaram “forçando” a existência de carros muito parecidos pela maioria dos fabricantes. Os SUV´s são exemplos típicos disso.
Nesse sentido, a FIAT arrisca em optar pela oferta de carros com as cores do verdadeiro espírito italiano, fora do tradicional e do já batido cinza ou prata. “Cores inspiradas no mar, no sol, na terra e no céu da Itália”, como chama atenção no vídeo de lançamento dessa decisão na Europa. Em tempo: destaque para a ironia do protagonista em relação às marcas de outros países.
Confesso que, em função de minha origem italiana e da minha aversão a carros de cor cinza ou prata (que nem deveriam ser classificadas como cor) apreciei muito tal decisão. Entretanto, trata-se de uma apreciação que tem origem em um consumidor final apreciador da marca FIAT.
Como professor rabugento de marketing, é impossível deixar de questionar tal decisão. Isso porque, em 2022, no mundo, carros em tons brancos mantiveram a liderança em vendas (34%). Tonalidades intensas de preto (com ou sem efeitos cintilantes) totalizam 21% das cores dos veículos nesse ano e as cores em tonalidades de cinza (com efeitos efervescentes e em variedade de matizes) estiverem presentes em 19% dos carros vendidos.
Logo, 74% dos veículos comercializados no mundo no ano passado tinham cor branca, preta ou cinza (ou prata, como preferir). Em tempo: esses dados foram retirados do 70º Relatório Global de Popularidade de Cores Automotivas de 2022 da Axalta Coating Systems, companhia especializada em revestimentos, vulgo tintas industriais.
Em vista disso, vem a questão: uma marca deve se render ao “modus operandi” da indústria em que está inserida (sua concorrência) ou deve ousar fazer algo diferente que busque, de alguma forma, ser percebida como única pelo mercado que atende ou pretende atender?
O mercado prefere adquirir carros de cores branca, preta e prata em função da oferta que a indústria passou a fazer em determinada ocasião de sua história (isso favorece ganhos de escala) ou ele exigiu da indústria que os oferecesse preferencialmente nessas três cores em função dos seus desejos?
Empresas e marcas são agentes sociais e, por conta disso, afetam a cultura de consumo de produtos e serviços. Não criam necessidades, criam desejos. De preferência aqueles que mais as favoreçam em termos de ganhos de escala ou custos reduzidos.
Em outras palavras, se o mercado formado por consumidores finais já demonstrou sua preferência por carros de cores “standard”, será a decisão da FIAT capaz de mudar tal comportamento ou preferência? Afinal, os SUV´s passaram a ser muito mais desejados depois que passaram a ser ofertados, não?
Se a Apple tivesse seguido à risca as recomendações da empresa de pesquisa de mercado que contratou para o lançamento do iPhone, jamais teria lançado esse brinquedinho.
Isso remete a um clássico slogan da campanha publicitária de um fabricante de biscoitos (esse professor mais do que paulista, é paulistano): “É fresquinho por que vende mais ou vende mais porque é fresquinho?”
Em tempo: por enquanto, a decisão da FIAT só vale para Europa. Infelizmente.
Ricardo Poli é professor, palestrante, provocador, piadista e colunista da BRING ME DATA.
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As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.