Fusões e Aquisições devem aumentar em 2024, mas e a alma das empresas?
O mercado demonstra entusiasmo com fusões e aquisições nos próximos meses.
Os primeiros dias de 2024 assistiram ao anúncio da transação entre Sequoia e Move3, dando origem a uma nova gigante da área de logística. No mesmo instante, também se oficializou o negócio entre Bemobi e a startup Nomo, na área de telecomunicações, enquanto a BYD negocia compra da Sigma Lithium em terras brasileiras.
A pergunta que sempre me vem à cabeça é a seguinte: O que acontece com a alma da empresa minoritária quando rolam essas fusões e aquisições?
E desde quando empresa tem alma? Eu responderia que desde sempre.
Organizações tem cultura, crenças, valores, atitudes, personalidade, essência, alma. Você deve se lembrar da rede The Body Shop. Fundada na Inglaterra em 1976 pela pioneira Anita Roddick, a marca refletia sua visão de mundo, defendendo o lucro ético, o consumo responsável, sem testes de componentes em animais, apostando em soluções biodegradáveis e recicláveis, sem conectar sua cadeia de valor com práticas de destruição ambiental, trabalho infantil ou remuneração injusta.
Em 1997, lançou campanha revolucionária que, décadas antes da campanha da Dove para a real beleza ou das mulheres reais da Natura, questionou os absurdos padrões de beleza da indústria e assim, promoveu comunicação com a boneca Ruby, de ancas largas, coxas e braços grossos, em cartaz que dizia que existiam 3 bilhões de mulheres no mundo que não pareciam Top Model e apenas 8 que se identificavam, despertando a ira da Mattel e da boneca Barbie.
Anita pensava que as relações humanas deveriam ser a prioridade na gestão, tornando a empresa um celeiro de inovação e valorização das pessoas para gerar valor à sociedade e não como meio exclusivo a serviço de ambição privada. Dizia:
“O mais importante nas empresas não deveria ser o lucro, mas, sim, a responsabilidade. Precisamos redefinir o lucro passando a medir o progresso com base no desenvolvimento humano, e não no produto nacional”.
A respeito de salários do C-level, reclamava:
“O mundo empresarial precisa reencontrar a cordialidade e rejeitar o que é obsceno, como são obscenas, por exemplo, as remunerações dos CEOs. No meu ponto de vista, pecado é demitir milhares de pessoas e aceitar em seguida um bônus de 100 milhões de dólares“.
The Body Shop foi comprada pela gigante L’Oréal em 2006 que prometia manter a cultura particular e a influência da fundadora que teve seus bons motivos para passar o bastão de controle. Anita até poderia ter a expectativa de levar suas ideias a uma escala maior como conselheira do conglomerado, no entanto, morreu pouco depois, em 2007.
Por questões de mercado tão comuns a grandes empresas, uma década depois, o negócio mudou novamente de mãos e foi comprado pela Natura & Co, em 2017, com o acordo de 1 bilhão de euros. Apenas meia dúzia de anos depois, se debatendo com perspectivas negativas de mercado, pressionada a concentrar foco, simplificar negócios e aumentar sua lucratividade, no final de 2023, a Natura combinou a venda das operações para o Grupo Aurelius, da Alemanha, por algo entre 207 milhões de libras a serem pagos em 5 anos.
Não há dúvida sobre o péssimo negócio realizado, mas o que me mais interessa nessa história é saber para onde foi aquela cultura particular moldada por 30 anos pelos times da The Body Shop? Onde há evidências daquela alma de Anita Roddick na empresa de hoje? Observe que eu não tenho dados científicos, informações de pesquisa recente de clima, nem mesmo observações de visitas fortuitas às lojas da The Body Shop. Atrevo-me apenas a imaginar que aquela alma evaporou e perdeu sua força.
É claro que os tempos mudam, que muitas outras empresas também começaram a trilhar o caminho de negócios justos, futuros sustentáveis, práticas saudáveis. Entretanto, desde que a empresa foi adquirida pela primeira vez, e com a morte da fundadora, não lembro mais de ver The Body Shop em destaque, atuando de acordo com seu ativismo polêmico, caminhando na vanguarda, surpreendendo o mundo empresarial e clientes.
Eu cheguei a trabalhar um tempo na TAM linhas aéreas do comandante Rolim, convivendo com as lideranças e respirando a cultura da empresa. Passei tempo suficiente para ver que havia muitas coisas a melhorar. Nada de tornar paradigma perfeito a TAM romântica, incensada por livros, artigos de revistas, entrevistas de lideranças da época.
Por outro lado, havia sim uma cultura surpreendente de geração de valor aos clientes, de tremendo cuidado com os passageiros, de incansável esforço para a excelência que era representada pelo comandante. Essas crenças e atitudes eram vividas nas lojas de passagens, no Fale com o Presidente, nas operações de voos, na turma responsável pelo catering.
Por muitos motivos, em negócio complicado que é o transporte aéreo, a TAM foi absorvida pela chilena Lan, anunciando a fusão em 2010, concluída em 2016, para dar origem a Latam Airlines. Já não estou mais dentro da organização há séculos, mas como passageiro, posso dizer que não é possível reconhecer nada da antiga TAM na atual Latam. Onde foi parar aquela “alma” surpreendente da TAM?
Claro que fusões e aquisições não são indesejáveis e negativas per se. No caso da TAM, muitas análises apontam para um caminho melhor, que trouxe mais solidez financeira à nova empresa.
A Botica Granado foi fundada em 1870 no Rio de Janeiro e tinha até o Imperador Dom Pedro II como cliente. Como empresa familiar por gerações, o negócio foi revigorado e transformado ao ser comprado pelo inglês Christopher Freeman nos anos 1990. Essa também foi a melhor opção para a Granado. O dono não tinha herdeiros nem plano de sucessão. A saúde da empresa não estava crítica, mas andava estagnada.
Participei de eventos, palestrando ao lado da filha do empreendedor, Sissi Freeman, diretora de marketing da Granado que me fez conhecer tremendo efeito positivo para a alma da empresa, para o crescimento dos negócios e posicionamento da marca. Parece que aquela tradição e bagagem de 150 anos ganhou impulso que manteve o legado e renovou a cultura, refletida na arquitetura das lojas, na expansão do portfólio, nas belas embalagens, no atendimento e em muitas outras dimensões. Em 2016, a espanhola PUIG comprou 35% da Granado para investir na expansão internacional da marca.
No final de 2023, a Nestlé fez a aquisição da Kopenhagen. Não conheço detalhes da história da família pioneira da Letônia que começou o negócio em 1928, mas sei que na minha infância e adolescência entre os anos 1970 e 1980, a marca já havia construído imagem do melhor chocolate brasileiro, com qualidade premium e produtos intensamente desejados como os bombons licorosos com cereja, os doces São Paulo, Lajotinha, Nhá benta, Língua de gato e outras criações deliciosas.
É consenso que a empresa se desenvolveu, se profissionalizou e cresceu muito com a compra pelo empresário Celso Ricardo de Moraes, do Grupo CRM, em 1996, tornando-se uma das maiores franqueadoras do país. No final de 2020, ele recebeu investimento da gestora de fundos de private equity Advent que multiplicou o ebitda da companhia por dois, abriu mais de 400 lojas e transformou o ecommerce em canal relevante para a rede Kopenhagen em poucos anos.
Agora, a CRM passa para o controle da Nestlé. Não tenho como prever o efeito sobre a cultura da Kopenhagen a partir dessa aquisição. Só vi um pouco do impacto suiço sobre a alma da Garoto, empresa que visitei em 2023 lá no Espírito Santo, fundada em 1929, um ano depois da Kopenhagen, pelo imigrante alemão Heinrich Meyerfreund.
A Garoto também foi comprada pela Nestlé em 2002, constituindo um dos maiores imbróglios a serem tratados pelo CADE, que finalmente aprovou a aquisição em 2023, com atraso de duas décadas, tempo em que o mercado se reconfigurou totalmente, diminuindo significativamente a participação das duas marcas no mercado brasileiro.
Será que ainda existem sinais da alma da Garoto, iluminada por aquelas histórias tão interessantes contadas no tour pelo museu da empresa, na organização de hoje em dia?
Como falei no início do texto, 2024 sinaliza movimento de recuperação nessa área de fusões e aquisições, indicando um número provável ao redor de 1.600 transações. Certamente, muitas delas importantes e necessárias, gerando sinergias, escalas, robustez e até operações de salvamentos, com muitos impactos positivos para a sociedade.
Só espero que legados culturais relevantes de empresas adquiridas ou fundidas, como os de Anita (Body Shop), Rolim (TAM), Adelina Hess (Dudalina), Meyerfreund (Garoto), Kopenhagen-Moraes (Kopenhagen) e muitos outros não desapareçam, substituídos por qualquer ordem tecnocrática vazia, fria, voltada apenas para resultados de acionistas, sem conexão com o espírito que moveu, inspirou e alimentou tantos sonhos e ações, compartilhados por funcionários, fornecedores e clientes.
Luiz Serafim é apaixonado por inovação, palestrante, professor, diretor-executivo da “World Creativity Day” que organiza o maior festival colaborativo de criatividade do mundo e colunista da BRING ME DATA.
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As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.