Acidental leitor ou leitora, vamos por partes…
“As ações da Nike desabaram 20% nesta sexta-feira (28/06/2024)”.
“A empresa projeta que sua receita vai cair cerca de 5% em meio a uma desaceleração na demanda.”
“As receitas da Nike com vendas diretas caíram 8% no trimestre encerrado em maio, enquanto as receitas totais afundaram 2%.”
“A empresa espera que a receita caia 10% no trimestre atual e que a receita no ano fiscal de 2025, que começou neste mês, caia na casa de 5%.”
“A Nike relatou uma queda de 10% nas vendas trimestrais e retirou sua previsão anual nesta terça-feira (01/10/2024).”
“As ações caíram até 7% depois que a empresa divulgou os lucros para o período de três meses até o final de agosto.”
“Durante esse tempo, a receita da Nike caiu 10% em comparação com o mesmo trimestre do ano anterior, enquanto o lucro líquido caiu 28%.”
“A Nike espera que as receitas para o trimestre atual caiam na faixa de 8% a 10%.”
Todas essas frases foram deliberadamente furtadas de matérias desse semestre do Financial Times. Para fins de veracidade, é importante que fique explícita a origem da fonte e a atitude furtiva desse velho professor de marketing rabugento.
Caso estivesse em sala de aula, certamente algum aluno “apressadinho” viria com a pergunta: “Mas o que isso tem a ver com marketing, Poli? Isso é assunto para aula de finanças!” Nessa situação, o silêncio fúnebre desse professor, ainda que por alguns instantes, seria suficiente para que fosse gerado um profundo arrependimento na mente do aluno “desbocado”. Com toda certeza que possa existir, tal estudante se lembraria de uma célebre frase de seu professor fuzilante: “Marketing é irmão gêmeo de finanças”, o que é justificado pelo fato da palavra “lucro” estar presente nas mais clássicas definições de marketing.
Na tentativa de se redimir, tal estudante emendaria, logo após o silêncio constrangedor, com a clara intenção de que a primeira reação verbal fosse rapidamente esquecida: “Quem diria, hein, professor?”. Tal artifício iria funcionar, visto que a questão central é justamente essa. Quem poderia imaginar que uma empresa detentora de uma marca tão potente e admirada, com uma história tão instigante, se tornasse notícia por motivos tão infortúnios?
Ouso arriscar, sem a mínima intenção de valorizar os ossos de meu ofício, de que as razões giram em torno de questões eminentemente ligadas a marketing. Ao ler e reler as matérias do FT, alguns fatos que poderiam passar despercebidos, certamente para aqueles que acham que marketing acontece somente no mundo digital, capturaram a minha atenção. Alguns deles, chegam a ser inacreditáveis.
Parte da justificativa “corporativa” da NIKE diante da situação atual gira em torno da queda de demanda por seus produtos, algo que desconfiei logo de cara. Em uma rápida busca “googleniana” chega-se ao seguinte fato: “Em primeiro lugar, o mercado de moda fitness deverá crescer de US$13,00 bilhões em 2023 para impressionantes US$16,30 bilhões até 2028.” Logo, é fácil concluir que, quase sempre, a resposta mais óbvia é a mais frágil. A culpa é sempre vem de outro lugar ou alguém, não é verdade?
Descartada a principal variável incontrolável da equação, há de se considerar a máxima de que “o resultado de hoje é consequência do planejamento de ontem”. Em vista disso, as referidas matérias jornalísticas dão conta de que o CEO que assumiu a direção da NIKE em janeiro de 2020, ou seja, pouco antes da famosa pandemia, foi “inicialmente” elogiado pela condução da gestão do negócio, tendo acelerado de forma rápida a mudança para as vendas diretas ao consumidor.
Não se trata de um fato novo, visto que inúmeras marcas assim o fizeram também de forma muito competente. No entanto, boa parte delas caiu na tentação diabólica de que poderiam crescer e prosperar sem a presença nos tradicionais canais de distribuição após a pandemia. Não precisar mais pagar o pedágio de atacadistas e varejistas foi realmente o canto da sereia para algumas delas. Até mesmo para a marca cujo nome remete a uma deusa da mitologia grega. Pelo visto, até mesmo os deuses se enganam.
Em tempo: contexto semelhante já foi analisado aqui numa coluna que tinha a SALLVE como tema central. Vale a leitura, obviamente.
Ficar de fora dos tradicionais canais de distribuição durante a pandemia foi algo quase obrigatório, ainda que a presença nesses mesmos canais em sua forma digital também o fosse. Mas a tentação veio justamente da possibilidade de se ter os próprios canais de distribuição “eletrônicos”. Afinal, nada como se relacionar diretamente com seus mais diversos públicos-alvo. Superados os desafios logísticos, tem tudo para dar certo, como assim ocorreu.
A tentação ficou ainda mais sedutora quando se passou a acreditar no dito “novo normal”, tão propagado, difundido e defendido por inúmeros analistas e gurus do mundo digital. Ideia que esse professor metido a escrevinhador sempre desconfiou, principalmente depois que leu alguns artigos de antropólogos sérios que retrataram contextos históricos decorridos após pandemias passadas. Fato que expressei claramente em uma frase presente num projeto de consultoria para o maior fabricante de bebidas desse país: “Após a pandemia, as pessoas vão querem suas vidas de volta…”.
A demanda por shows e turismo são exemplos, mais do que evidentes, de que a teimosia em nadar contra a corrente das ideias óbvias não foi em vão. Insistir em permanecer nos canais digitais próprios negligenciando a volta aos tradicionais canais de distribuição cobrou o seu preço. Afinal, pessoas voltaram a passear nos shoppings, mais do que nunca. Não estar presente no varejo físico implica necessariamente que alguém estará. Nesse caso específico, marcas como a On e a Hoka, principalmente em terras do Tio Sam e na Grande China. Segundo o FT, essas marcas obtiveram crescimentos significativos no “pós-pandemia”, fato oposto ao ocorrido na NIKE.
Como diria Isaac Newton, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Recuperar o espaço nas prateleiras passou a ser o grande desafio para a NIKE. Isso vai custar muito tempo, ainda mais quando se tem que enfrentar o ressentimento de varejistas outrora abandonados. E tempo, nesse caso, é literalmente dinheiro. Arriscaria dizer que se trata de um bom momento para comprar ações dessa empresa com vistas a um bom retorno num futuro de dois a três anos. É prudente não acreditar em mim quando o assunto é esse, ok?
Por fim, outra justificativa envolve a gestão de portfólio. Alguns analistas defendem a ideia de que a NIKE ousou demais no que tange as tendências de moda de “nível intermediário”, faixa que também foi invadida por marcas mais premium e atrativas a consumidores dessa vertente. Em vista disso, outros analistas apontam que “o conceito de oferecer tudo para todos” já não vale mais para o setor em questão, ainda mais para o grupo estratégico da NIKE. Em outras palavras, um choque derivado da desnatação de uns contra a elevação de outros. Confesso que tal análise é complexa e requer um estudo muito consistente para se chegar a tais conclusões. Por enquanto, acreditemos nos analistas.
A NIKE sempre primou por seu foco no desenvolvimento de produtos inovadores em termos de design e tecnologia. Por um bom tempo, preferiu deixar seus processos de fabricação e distribuição alheios ao negócio principal, assim como faz a COCA-COLA até hoje. No mundo dos negócios, assim como na vida, tudo é permitido, mas nem tudo é conveniente.
A grande lição de tudo isso? Algo que me faz recordar um princípio valioso da velha e boa matemática:
“Exemplos não são demonstrações.”
Fim da coluna, até semana que vem…
Ricardo Poli é professor, palestrante, provocador, piadista e colunista da BRING ME DATA.
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As opiniões aqui contidas são de responsabilidade de seu autor e não refletem necessariamente a opinião da Bring Me Data e do blog da Macfor.